A manifestação do arquétipo inocente na decoração é muito clara quando entendemos os movimentos e ciclos do nosso amadurecimento. Também é importante entendermos o seu caráter compensatório em qualquer outro momento de nossas vidas.
No post de hoje, vamos explorar a manifestação desse arquétipo e sua aplicação na criação de ambientes
O início
Assim que me converti ao cristianismo (após décadas de ateísmo), empreendi uma tarefa um tanto quanto ingênua; fazer um altar doméstico que me inspirasse a orar diariamente com fé e devoção. Para esse piedoso projeto, abri uma clareira entre os livros e comecei a garimpar imagens, ícones, tecidos, flores, incensos, velas e um monte de outras coisas que naquele momento pareciam imprescindíveis ao plano…
O que era um pequeno altar foi ganhando proporção e me vi comprando e trocando novamente as imagens, as flores e todos os elementos da composição até alcançar um determinado e muito específico tipo de equilíbrio que jamais conseguiria explicar com palavras, mas tive a plena certeza de ter alcançado ao final do processo…
Foram semanas de garimpo, dezenas de horas ordenando e reordenando os elementos e eu mal podia acreditar, parecia que finalmente havia concluído! Sabia disso por que sentia uma indescritível alegria. Tudo parecia muito ordenado, estético, belo e até sublime! Era muito prazeroso ter garimpado e organizado tão bem os elementos. Estava tomado por uma sensação de missão comprida, e tudo parecia ter existido para esse único e exclusivo fim. O meu altar.
Estava tão absorvido que nem percebi que algo muito importante ficou pelo caminho… Eu sequer me lembrava que o objetivo inicial era criar um altar que me inspirasse a orar com fé e devoção. A essa altura, o meio se tornou o fim e consumido pelo processo sentia uma vibrante energia criativa fluindo, não havia espaço para mais nada em minha consciência…
A verdade é que minha fé não se alterou em absolutamente nada, mas os insights que obtive pavimentaram mudanças muito significativas em minha mente, trazendo benefícios para minha vida pessoal e profissional. Se tem algo que destaco dessa curta experiência é a compreensão de que nunca deveríamos subestimar o poder dos planos do inocente. Existe algo no processo que está muito além do que poderíamos enxergar quanto miramos o objetivo. Esse é o grande trunfo do inocente, o arquétipo que vamos apresentar hoje.
O inocente no ciclo do desenvolvimento
O inocente “aparece” em inúmeras ocasiões ao longa da vida e ocupa uma posição muito privilegiada no decorrer do processo de desenvolvimento psicológico, que no contexto da psicologia analítica é denominado “individuação”. Esse desenvolvimento introduz mudanças significativas nas dimensões conscientes e inconscientes da psique, e prevê períodos graduais de maturação lenta, mas também guinadas e avanços rápidos na consciência. Esses processos de transformação interior costumam ser representados simbolicamente como uma jornada, que longe de ser um processo linear, inclui inúmeras repetições, estagnações e retrocessos.
Logo que chegamos ao fim de um determinado processo de desenvolvimento, nota-se a necessidade de empreender outra jornada. Aparentemente esse processo não tem fim, e com isso estamos sempre retomando o arquétipo inocente, ainda que a cada ciclo ele esteja munido de novas ferramentas e habilidades para recomeçar.
Essa movimentação circular ascendente de amadurecimento da consciência, expresso na metáfora da estrutura narrativa avança tanto por sincronicidade – uma união de imagens e significados psíquicos internos e acontecimentos externos – quanto por sequência de acontecimentos e resultados causais, e isso torna o espaço da individuação um tanto complexo e até mesmo paradoxal.
O inocente e o tarô
Vou retomar o exemplo da carta O louco do tarô que já mencionamos antes. Essa carta não tem número, portanto ela ocupa simultaneamente a posição 01 e 22, ou seja, ela é tanto o início quanto o fim da jornada. Nesta carta podemos ver o indivíduo ainda ingênuo que se lança em busca de experiências. Ele deixa sua vida anterior para trás. A figura do animalzinho parece querer puxá-lo de volta para sua antiga posição, simboliza o comodismo que tenta impedir a mudança. Mas o Louco parece não olhar para trás, dá um salto de fé na direção da jornada, em direção ao seu novo ciclo de amadurecimento que insufla vida na realidade psíquica.
Acho que já está claro como o movimento do inocente é importante para o processo de maturação da consciência, agora resta-nos entender quais as aplicações desse simbolismo e como adotá-los conscientemente no contexto da decoração.
Mas antes disso permita-me uma breve ressalva; para esta parte do conteúdo precisaremos deixar a mente aberta quanto a possível ambiguidade de alguns símbolos, e ser tolerante quanto aos contornos difusos que limitam seus significados. Os símbolos são a linguagem dos arquétipos, e Segundo Jung, “Quando a mente explora um símbolo, é conduzida a ideias que estão fora do alcance da nossa razão”. E isso quer dizer que apesar de compartilharmos de um sistema de significados comum, podemos não dispor de palavras para expressá-los integralmente à moda da razão. Feita a ressalva, vamos as descrições gerais:
O inocente na decoração
O arquétipo do inocente expressa uma visão positiva da vida, seus símbolos estão associados à bondade, moralidade, simplicidade e nostalgia. Costumam transmitir paz e felicidade através da criação de um ambiente simples e agradável. O Arquétipo do Inocente é um pouco de uma criança feliz misturada com um sábio místico que acredita que é possível viver no paraíso para sempre.
É muito comum ver a manifestação do simbolismo desse arquétipo em ambientes comerciais, explicitamente nas lojas infantis, mas de forma ainda mais elaborada nas modernas docerias e também em lojas de roupas femininas. Nas residências, é quase que predominante nos quartos infantis e adolescentes, especialmente para as meninas, mas aparece sobretudo nas casas românticas dos recém-casados.
Quando tínhamos uma loja de pôsteres, o Estúdio Cereja, o pôster que mais vendia era um que continha a frase “Eu cuidarei do seu jantar, e de você e de mim” criado pela designer Anne Pires. A inocência dessa frase é autoexplicativa e o perfil das compradoras corroboram o que estou trazendo. A verdade é que todos nós em algum nível ansiamos por esse lugar onde os sonhos de segurança e estabilidade possam existir com relativa previsão. Em um mundo frenético e estressante, esse tipo de expectativa, do cuidado diário e previsível do jantar como expressão de afeto, tornam-se um oásis para o nosso inocente interior.
Para além das frases de conforto, os ambientes que expressam o inocente são marcados também pela escolha de tons leves, neutros e pastéis, com predominância de cores claras, que variam entre os azuis, verdes e rosas. Muitas vezes com peças artesanais feitas a mão e simples, objetos com curvas suaves e atmosfera geral “doce” ou mística.
Como caráter compensatório da psique, a adoção de um espaço na simbologia do inocente pode oferecer refúgio diante da complexidade e pressões da vida. Tomando o devido cuidado para não cair na negação ou repressão das inevitáveis batalhas que a vida de adulta exige, torna-se um ambiente muito salutar.
Nos grandes mitos e narrativas da humanidade, o lugar ideal (inocente) é simbolizado pela bucólica paisagem doméstica, com cercas baixas e jardins bem cuidados, talvez exista um bosque sagrado depois de um pasto verdejante. A terra é sempre fértil e não há quaisquer vestígios de morte ou destruição no horizonte. As pessoas vivem felizes e com simplicidade, parecem espiritualizadas e cheias de significado e propósito. Nesse ambiente o aroma do café é quase palpável, biscoitos recém-saídos do forno complementam a cena, que juntos com o farfalhar das folhas ao vento criam um ambiente delicado e inspirador.
Se existe alguma esperança de paraíso em nosso inconsciente coletivo, é a construção do espaço idealizado para o arquétipo do inocente. É por isso que muitos empreendimentos imobiliários no campo se valem desse anseio universal para vender imóveis afastados da cidade. Tudo o que o inocente quer, é manter a esperança, e a depender do contexto, isso pode tanto nos mover quanto nos paralisar.
Vamos agora nos debruçar sobre algumas aplicações (ou talvez manifestações) do arquétipo inocente no contexto da decoração. Não vamos nos estender sobre cada exemplo por que isso será disponibilizado em um material a parte num outro momento.
Quarto infantil: Até determinada idade, expressa claramente o estágio de desenvolvimento da psique infantil. Em um amadurecimento normal, a própria criança se rebela contra o ambiente inocente e começa a alterá-lo riscando as paredes, colando pôsteres ou pedindo para os pais que realizem um novo projeto. Esse movimento é positivo e saudável, e indica o movimento de amadurecimento da personalidade.
Lojas de roupas: Algumas marcas, especialmente voltadas para o público feminino, se posicionam claramente se valendo do arquétipo inocente. É claro que o desenvolvimento desses espaços estão condicionados sobretudo às características dos produtos dessas marcas. Acho o exemplo da Farm especialmente representativo, mas basta um breve passeio pelo shopping para encontrar inúmeros outros exemplos.
Docerias: Local que promete refúgio contra o ritmo frenético da vida moderna. Uma pausa para uma experiência sensorial com sabor de infância. Pode vir acompanhado de ritualismo e até mesmo romance. Esse é o típico espaço comercial em que o arquétipo do inocente sempre funciona.
Espaços místicos e religiosos: Uma característica menos popular do arquétipo inocente é a busca por serenidade, tranquilidade e equilíbrio que é ofertado por vertentes espirituais menos ortodoxas. Espaços de meditação e refúgios na natureza são uma outra faceta desse arquétipo, e podem ser encontradas em spas ou locais de retiros espirituais.
Residências: A nossa espécie é a única que possui a capacidade de expressar seu mundo interior a partir de símbolos. Esses símbolos, quando conscientizados, têm o poder de indicar e fomentar ciclos de transformação e amadurecimento da psique. Esse processo de transformação pode ser tanto consciente quanto inconsciente. Em ambos os casos, sentimos nos impelidos por forças difíceis de discernir ou de explicar racionalmente, ainda que saibamos estar submetido aos seus ditames. Resistir a esses movimentos de transformação induzidos pelo mundo interior (si-mesmo) pode estar na raiz de diversas desordens psicológicas.
Parte das indicações simbólicas necessárias às transformações se manifestam através dos sonhos, mas trazemos como hipótese para o conceito de casa arquetípica que essas indicações simbólicas também podem ocorrer através de preferências estéticas inconscientes no ambiente doméstico. Que poderiam se manifestar de muitas formas possíveis, como por exemplo:
* Atração por mandalas ou objetos semelhantes.
* Padrões de imagens nas paredes, por exemplo, paisagens com trilhas e percursos.
* Imagens religiosas em geral.
* Incenso e velas
* Plantas, pedras e natureza dentro de casa.
* Padrão de cores.
* Estilos, e muito mais…
Para usar um exemplo prático e pessoal, nos últimos anos despertei para um crescente interesse na figura de São Francisco. A figura deste santo agrega várias camadas de significados simbólicos, que variam desde a bondade e devoção a Deus, como também a compaixão com os animais e o caminho introspectivo do eremita. Ao começar minha coleção dessas imagens há alguns anos, pensei estar apenas colecionando um objeto de arte especificamente atraente sem qualquer outro significado profundo. Com o passar dos anos, consigo entender que minha atração por São Francisco não é tão arbitrária assim. O santo, como manifestação simbólica, expressa uma série de valores e características que eu não só desejava, como precisava urgentemente desenvolver em mim mesmo.
Claro que isso pode dar margem para muita confusão se não for bem compreendido, nem tudo o que gostamos tem necessariamente um valor simbólico positivo, ou sequer indicar mudanças positivas para o nosso desenvolvimento. Muitas das nossas preferências são manifestações contrárias aos interesses da nossa evolução, e isso também requer atenção. Afinal, somos todos passíveis de se fixar em padrões regressivos, e é exatamente essa a manifestação da “Sombra” do arquétipo inocente.
Uma outra ressalva é o caráter único da manifestação arquetípica na vida de cada pessoa. São Francisco pode não significar absolutamente nada pra você. A singularidade das nossas vidas se expressam de forma igualmente singular, apesar de estarmos atrelados a uma estrutura narrativa comum.
Por fim, tenhamos em mente que no conceito de Casa Arquetípica, podemos trabalhar tanto com “alavancas” positivas para o processo de individuação como fomentar ambientes de compensação.
Outro ponto que vale ressaltar é que nossa personalidade não pode ser reduzida aos símbolos de um único arquétipo. Somos seres complexos e em constante transformação, e apesar de para cada fase da vida termos a predominância de um arquétipo principal, geralmente este é apoiado por outros que complementam a representação única de cada personalidade. Ambientes ou pessoas que expressam um único arquétipo podem soar como caricaturas de si mesma.
A casinha da ilha
Conheço muitas casas que expressam o arquétipo inocente, inclusive muitas das que já morei, mas tem uma que acho especialmente representativa e que pessoalmente pude acompanhar de perto o seu desenvolvimento. Trata-se da “Casinha da ilha” de Mari e João.
Éramos amigos próximos do casal quando morávamos no Rio de Janeiro, e após alguns anos morando num pequeno apartamento no Recreio dos Bandeirantes, o jovem casal, com sua filha ainda pequena, iniciou o audacioso projeto de mudar radicalmente a rotina e viverem em uma pequena ilha onde o acesso ao continente se dava exclusivamente por barco.
Ainda lembro das inúmeras conversas que tivemos ao longo da construção e de toda a expectativa que envolvia a família. Chegamos a visitar a construção em alguns momentos, e anos depois, já morando em Pernambuco, conhecemos pessoalmente a casa concluída em uma viagem de passeio ao Rio de Janeiro. Foi um momento muito especial e os registros dessa visita estão aqui e aqui.
Ao observar as fotos, você notará que todos os ambientes da casa se beneficiavam de um certo encanto natural, a começar pela paisagem, generosa e presente em todos os cômodos da casa. A iluminação natural era abundante e o som das águas e dos pássaros se juntavam ao perfume da natureza e criavam uma atmosfera inimaginável para quem vive na cidade.
Tudo na casinha da ilha era especial e encantador, e bem sabemos que construí-la não foi tarefa fácil, mas o que mais nos surpreende nessa história é saber que a família responsável por essa construção tão poética esteja morando na capital financeira mais movimentada do país. Isso mesmo! Essa família hoje mora em São Paulo, bem distante do antigo recanto idílico construído no complexo lagunar da Barra da Tijuca. Surpreendente não?
Sim, e talvez nem tanto rs. Lembro que na ocasião da nossa última visita, com o segundo filho do casal a caminho, era perceptível que a empolgação com a casinha já não era mais a mesma. Problemas logísticos com o translado e outros detalhes que já não me recordo pareciam turvar o brilho que antes havia em seus olhos… Tudo indicava que ela havia cumprido a sua missão, e a família se preparava para novas guinadas em seu desenvolvimento.
Conclusão
Penso que no fim das contas a motivação de construir uma casinha na ilha não seja tão diferente da motivação de construir um altar doméstico como expliquei no início desse post. Em ambos, somos movidos por imagens ideais e tentativas de vislumbrar frações do paraíso. Essa compreensão pode nos dar a falsa sensação de que tanto a casinha da ilha como o altar doméstico tenham fracassado em sua meta original. Mas eu lhes digo que foi exatamente o contrário, somos sempre inocentes ao iniciar qualquer empreendimento, essa talvez seja a grande função psicológica desse arquétipo, nos indicar um caminho idealizado e segui-lo até descobrir que o percurso é a meta. No fim das contas, isso criará as bases para o surgimento do explorador que há em nós. Tema do nosso próximo post.
Nossa! Que conteúdo maravilhoso. Agora percebi o quanto do “Louco” eu tenho em mim, manifesto na decoração da minha casa.
Parabéns, Léo e Ana!